A cronologia da censura
A liberdade de imprensa foi assegurada aos brasileiros em 28 de agosto de 1821, assinada por D. Pedro I. Cento e cinqüenta e um anos depois, precisamente no dia 6 de setembro de 1972, o decreto de D. Pedro foi censurado pelo Departamento da Polícia Federal, com a seguinte ordem a todos os jornais do País: “Está proibida a publicação do decreto de D. Pedro I, datado do século passado, abolindo a Censura no Brasil. Também está proibido qualquer comentário a respeito”. A proibição de se referir, nos meios de comunicação de massa, ao ato de D. Pedro revela a orientação da Censura. Protegida pela própria censura, ela não hesitava em fazer proibições ridículas, segura de que elas não chegariam ao conhecimento público. Houve muitos outros episódios que seriam cômicos, se não fossem humilhantes para o País. A Censura, parte do Estado autoritário, o protegia e, protegendo-o, protegia a si.
A despeito do segredo que sempre cercou as atividades da Censura, é possível, com base em pedaços esparsos de informação, reconstruir sua história, com os seus diversos períodos. Ela seguiu um caminho semelhante ao de muitas outras instituições autoritárias: as suas sementes foram lançadas pelo primeiro ditador brasileiro, Getúlio Vargas, estando presentes no Código Penal de 1940, por obra e graça de Francisco Campos; durante o período democrático, o Brasil não reviu à legislação corporativista: ao contrário, manteve boa parte daquele entulho legal, ainda que o usando comparativamente pouco. Assim, já havia, como em outras áreas de possível ação governamental, uma legislação repressiva e centralizadora, que a ditadura militar utilizou.
A Censura não atuou de maneira uniforme durante os 21 anos da ditadura. Houve períodos de maior e de menor intensidade. Ela seguiu o mesmo padrão de outros indicadores do grau de autoritarismo das diversas administrações: foi atuante no período imediatamente seguinte ao golpe de 1964 (1); posteriormente, houve flutuações, observando-se ondas que, possivelmente, indicam períodos de maior influência no governo militar, de grupos e pessoas com vocação autoritária. A expansão mais acelerada da ação da Censura teve lugar durante o período mais negro por que o País passou: desde o AI-5, em dezembro de 1968, no governo Costa e Silva, até o fim do governo Garrastazu Médici. Do início da distensão, durante o governo Geisel, até 1976, somente foram controlados alguns aspectos mais gritantes da censura; a partir de 1976, data em que se afirma, o governo Geisel controlou a linha dura, houve uma clara diminuição de suas atividades sem que, não obstante, os seus instrumentos fossem eliminados: o ditador não abriu mão deste instrumento ditatorial. Foi somente no final do governo Geisel e início do governo Figueiredo que a liberdade de imprensa foi restaurada no Brasil.
A crer nas palavras de Castello Branco e Costa e Silva, assim como no testemunho de muitos dos seus auxiliares diretos, os dois ditadores teriam um compromisso com a democracia, em geral, e com a liberdade de imprensa em particular. Para os seus defensores, este compromisso teve o efeito de evitar que “as coisas fossem ainda piores”. Com isso se pretende isentar, no julgamento da História, estes militares pelos atos insofismavelmente ditatoriais que cometeram, acenando com o que teriam impedido que acontecesse. Em favor deles, pode e deve ser argumentado que não houve censura direta e oficial até 1968; porém, outros, com maior justiça, argumentam que quem edita o Ato Institucional n. 1, o AI-2 e o absurdo que foi o AI-5, quem cassa mandatos de deputados eleitos pelo povo brasileiro e decreta o recesso do Congresso institui, com facilidade, a censura. Os atos institucionais, particularmente o AI-5, foram instrumentos ditatoriais de escala maior do que a censura. Além disto, não é verdade que, durante o governo dos dois primeiros ditadores, a liberdade de imprensa tivesse sido rigorosamente respeitada. Jornais de esquerda e jornais pró-João Goulart, como Politika, Folha da Semana, O Semanário e outros, foram invadidos e suas oficinas destruídas. Jornais respeitáveis, mas favoráveis a Goulart, como a Última Hora, uma das principais cadeias jornalísticas do País, foram igualmente invadidos e destroçados. O Correio da Manhã, que se opôs radicalmente a Goulart, mas denunciou com veemência os excessos da ditadura foi sistematicamente perseguido: a sua sede foi atacada a bomba, invadida e interditada, uma edição foi sumariamente confiscada e sua proprietária, Niomar Bittencourt, presa por mais de dois meses. Por fim, parcialmente como resultado da perseguição de ditadores que pretenderam ingressar na História como democráticos, o Correio da Manhã fechou as portas. Assim, definir Castello Branco e Costa e Silva como fiéis respeitadores da liberdade de imprensa é um desrespeito aos fatos. O máximo que se pode dizer a favor dos dois ditadores é que, em comparação com o que viria depois, que foi muito pior, os seus governos censuraram menos. A História não esquecerá que foi Castello Branco quem impôs os primeiros atos institucionais ao povo brasileiro, nem que foi Costa e Silva quem assinou o AI-5.
O AI-5, promulgado em 13 de dezembro de 1968, instaurou a ditadura deslavada no Brasil, embora a situação anterior estivesse longe de ser democrática. A história da repressão (e da liberdade de imprensa) divide-se claramente em três períodos: antes do AI-5, entre o AI-5 e o início do governo Geisel, e de então até a restauração da democracia. Antes do AI-5, a censura estava incluída entre as medidas que poderiam ser adotadas se “necessárias para a defesa [do regime]“, assim como em caso de estado de sítio. Posteriormente, essas medidas coercitivas foram postas em prática sem que fosse declarado o estado de sítio. Com o AI-5 a situação piorou consideravelmente: no mesmo dia da publicação do Ato, o Jornal do Brasil foi ocupado por dois oficiais; no dia seguinte, os jornalistas substituíram o material aprovado, publicando o material proibido; no dia 15, cinco oficiais passaram a censurar o jornal, o que fizeram durante três semanas (Dines, 1975). A partir de 6 de janeiro, o Jornal do Brasil submeteu-se à auto-censura, em conformidade com as instruções da Censura, situação que perdurou até 1972 (2). O Correio da Manhã também foi invadido logo após o AI-5; Hélio Fernandes, diretor da Tribuna da Imprensa, que, tendo sido preso e confinado à ilha de Fernando de Noronha, tinha sido solto, foi preso outra vez. Em São Paulo, uma edição do O Estado de São Paulo foi confiscada porque protestava contra o AI-5 e, em vários pontos do País, abusos semelhantes foram constatados. É claro que o AI-5 deu à linha dura civil e militar a oportunidade de exercer, na prática, a sua fé fascista e antidemocrática. Em diferentes pontos do País, ações repressivas, inclusive várias contra a imprensa, foram levadas a cabo, sugerindo, por um lado, que elas foram parcialmente coordenadas e, por outro, que as forças antidemocráticas estavam à espera do AI-5 para agir contra as pessoas e instituições contrárias à ditadura.
Autor desconhecido
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